Manual para catadores(as) é a união de conhecimentos entre universidade e cooperativa
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Há mais de 15 anos trabalhando com os catadores de materiais recicláveis, Valdemir Lima observa a formação e o desenvolvimento destes trabalhadores que adquirem e compartilham, dia após dia, a “sabedoria formada pela prática”, como ele mesmo diz. Com base nesta atuação, dentro da Cooperviva – Cooperativa de Trabalho dos Catadores de Material Reaproveitável, localizada em Rio Claro, no interior de São Paulo, o assessor técnico, pesquisador e professor acaba de lançar a publicação “ISO 14.001 Para Organizações de Catadores”, um manual para implantação do Sistema de Gestão Ambiental para a categoria. O trabalho partiu da tese de doutorado de Lima, sob orientação do engenheiro hidráulico e professor João Sérgio Cordeiro, na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). A publicação homenageia dona Inair Francisca Marcelino, catadora que fundou a Cooperviva e que nos deixou este ano.
Leia a entrevista abaixo
Qual o principal objetivo deste manual?
Acredito que o objetivo maior do manual, pautado no estudo de caso desenvolvido junto à Cooperviva: Cooperativa de Trabalho dos Catadores de Material Reaproveitável de Rio Claro/SP, seja a internalização dos conceitos necessários à implantação do Sistema de Gestão Ambiental – SGA, segundo a ISO 14.001. Ou seja, a ideia é levar às bases, sem desconsiderar o saber acumulado do(a) catador(a) e sua realidade, o entendimento dos possíveis impactos ao meio ambiente e, consequentemente, sua mitigação (diminuição dos impactos negativos) – mesmo que sua essência seja o cuidado com a natureza – com vistas à melhora das condições pessoal, estrutural e legal dos catadores e catadoras.
De onde surgiu a ideia de construí-lo? E como isso se relaciona com sua trajetória junto aos catadores e a reciclagem?
Em 2007, estagiei na Secretaria de Meio Ambiente do município de Rio Claro/SP e, nesse tempo, conheci a Cooperviva. À época a presidência estava com dona Inair Marcelino, que além desse cargo, era uma das fundadoras do empreendimento. Ouvi atentamente a história de vida dela: uma mulher guerreira que labutou, e muito, na catação dos materiais recicláveis no antigo lixão da cidade e sustentou sua família com os recursos advindos dos materiais “garimpados” nesse meio. Me lembro da paciência e do acolhimento dela para comigo. Ao longo desse processo aprendi com os saberes adquiridos pela Inair e demais cooperados(as): a sabedoria formada pela prática. Nesse período construímos estratégias para trazer maior visibilidade à instituição, formalizada em 2002. Íamos às praças, às escolas e, junto às indústrias geradoras, mesmo antes da implementação da Lei 12.305/2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos, buscávamos recursos infraestruturais para a melhora da organização. Já em 2011, iniciei minha pesquisa de mestrado e a ideia sempre foi de evidenciar o protagonismo dos(as) catadores(as), sobretudo da Cooperviva. No decorrer desse caminho construímos diversas propostas que se materializaram em melhorias infraestruturais ao empreendimento. Em 2014, no doutorado, pensamos em utilizar os preceitos da ISO 14.001 na instituição: um imenso desafio considerando a complexidade técnica da norma, mas, junto ao meu orientador, João Sergio Cordeiro, enfrentamos o desafio e, após 4 anos de trabalho, conseguimos apresentar os preceitos da norma para trazer, minimamente, a importância desse conceito à cooperativa considerando as demandas do mercado da reciclagem. Assim, de maneira bem resumida, nos mobilizamos para construir um manual que pudesse dialogar com a realidade do catador e da catadora em suas diferentes bases, tendo como pano de fundo a experiência exitosa em Rio Claro, à observância das legislações ambientais e ao fortalecimento do protagonismo dos trabalhadores envolvidos na catação dos materiais recicláveis.
Como foi unir o conhecimento acadêmico com a sabedoria dos catadores?
Reitero o que apresentei nas primeiras palavras do manual: o desenvolvimento do conhecimento não é um monopólio apenas dos que estudaram em livros, nas escolas ou nas universidades, pois é um processo acessível aos sujeitos que possuem vivências práticas: e todos possuem! Isto pressupõe o caminho à compreensão da realidade. O saber empírico (prático e oriundo do sujeito) é um dos pilares do conhecimento e, quando associado à ciência, exprime a complexidade da realidade do mundo à qual pertencemos. Destaco a importância das universidades públicas nesse quesito, porém ela deve dialogar com a sociedade, não pode haver divórcio. Basicamente sua estruturação se dá na construção da pesquisa, do ensino e, não menos importante, da extensão, por isso, e repito, o saber sistematizado nesse ambiente pode e deve dialogar com os demais saberes construídos pela sociedade; enriquece nossa construção social, traz vida ao meio que estamos inseridos! Não há como desconectar a compreensão do mundo dos grupos populares. Entendo que este material não irá sanar a desigualdade e a falta de investimentos aos diversos empreendimentos constituídos de catadores(as) espalhados pelo Brasil, contudo, quero ao menos contribuir para que os territórios obtenham maior estruturação, por intermédio das ferramentas gerenciais apresentadas e dispostas na normativa.
Baseado em sua trajetória na Cooperviva, qual sua avaliação sobre o avanço da categoria nos últimos anos?
Não posso deixar de enfatizar que o protagonismo, advindos das lutas, disputas e avanços da categoria, pertence ao(à) catador(a). Sempre converso com a base que estou e fui inserido: ninguém, além do catador e da catadora deve intervir de maneira arbitrária aqui. A tomada de decisão pertence à categoria! Porém, quando construímos conexões com demais instituições, considerando a pauta de luta da categoria, podemos avançar. Vejo que, sobretudo após aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, construída com muita luta e esforço pelo movimento dos catadores (não vou citar nomes aqui pois corro o risco de ser injusto: há diversos sujeitos, neste plano terreno e alguns não mais, que cumpriram e cumprem essa árdua missão). Assim, nas últimas décadas o trabalho do(a) catador(a) vem avançando com a implementação de atos declaratórios, legislações e, sobretudo, a internalização desses conceitos em diferentes esferas da sociedade, ainda um pouco tímida, mas avançando, à importante prática da coleta seletiva. Nesse contexto, trago à tona novamente a Política Nacional de Resíduos Sólidos que evidencia o importante papel dos(as) catadores(as) de materiais recicláveis – individuais, organizados(as) em cooperativas ou associações – ao gerenciamento adequado dos resíduos pós-consumo.
Na sua opinião, quais pontos principais a categoria precisa avançar neste momento? Onde as informações do manual se encaixam nisso?
Quero destacar dois pontos. O primeiro diz respeito a fatores externos às organizações de catadores. remete-se a políticas excludente, clientelista e populista de muitos territórios que reproduzem sujeitos à mercê da dependência partidária de muitos governos: as políticas compensatórias, junto às diversas bases, até conseguem, por um pequeno período, minimizar a vulnerabilidade desses trabalhadores, entretanto é urgente a instituição de políticas contínuas que resultem em estratégias emancipatórias, sobretudo por meio do pagamento do serviço ambiental à categoria, conforme prescreve a PNRS e demais legislações. O catador possui uma dura missão: coletar, triar, prensar e escoar seu material, entretanto é preciso ir além, e isso me faz apresentar o segundo ponto: para que isso ocorra, é imprescindível que as bases, em seu interior, conheçam sua história, registrem suas atividades, organizarem seu dia a dia, ou seja, se profissionalizem, se apropriem das ferramentas existentes para a construção desse arcabouço que não é fácil, contudo não é impossível: o mercado da reciclagem é avassalador e não está nem ai para o catador. Parece dura essa última colocação, mas quero trazer esse choque de realidade, considerando um pouco do que experienciei junto à Cooperviva ao longo desses 16 anos. Por isso, acredito que o manual, pautado nos preceitos da ISO 14.001, sobretudo aplicável à realidade do catador, pode ajudar a construir esse entendimento.
A aplicação de uma gestão ambiental correta pode colocar as organizações de catadores em que estágio na cadeia da reciclagem?
Acredito que quanto mais as organizações de catadores(as) entenderem seu papel, o contexto institucional que estão inseridos e como o sistema de gestão ambiental pode contribuir à melhora de seu trabalho, considerando os possíveis impactos ambientais adversos e, porque não, benéficos à base e à sociedade, o empreendimento poderá dar um salto de qualidade e atrair olhares de organizações e demais órgãos à construção de parcerias, investimentos e, até mesmo, à estruturação de oportunidades de negócio. Costumo dizer que os empreendimentos constituídos de catadores, sem desrespeitar a gestão horizontalizada, sobretudo seu estatuto social, é um modelo de negócio capaz de gerar impactos social, ambiental e econômico aos trabalhadores e à sociedade.
O que você mais aprendeu com essa categoria, com estes trabalhadores? E lembrando sua trajetória ao lado de dona Inair Francisca, fundadora da Cooperviva, quais foram os aprendizados?
No início de minha trajetória profissional achei que poderia ajudar a categoria com a experiência adquirida na universidade, mas hoje vejo que foram eles que contribuíram com a pessoa que sou, e continuo sendo. Voltando à história de dona Inair, que me emociona e traz uma imensa saudade, sobretudo após sua partida, em julho deste ano, pude acompanhar e aprender com sua ousadia o pontapé para implementar uma iniciativa tão impar e importante em Rio Claro: a Cooperviva! E que simbolismo este nome: viva é a chama dessa catadora que um dia ousou e enfrentou o medo, mas que não deixou ser intimidada por ninguém: foi lá e fez com demais companheiros e companheiras. Ao longo desses 20 anos, a história do empreendimento se mistura muito à história de vida de dona Inair: a essência da organização está carregada de resistência, resiliência, cuidado e bravura. Tenho certeza que todos aqueles que vivenciaram ao seu lado, por um pequeno período ou longo, lembram do contagiante senso de humanidade, destreza, empatia e alegria que essa mulher exalava. Que possamos estender e dar continuidade ao legado dela em nossa peregrinação.
Na sua visão, catadores e catadoras representam o que neste atual panorama? E o que eles podem representar, caso superem os grandes desafios atuais?
A implementação de práticas relacionadas à coleta seletiva e ao reaproveitamento de resíduos potencialmente recicláveis, desempenhados pelos catadores e catadoras, representam caminhos relacionados à gestão e ao gerenciamento adequado dos resíduos: a valorização do ciclo de vida dos produtos, em observância à PNRS. Qualquer iniciativa que desconsidere ou minimize a participação do catador e da catadora é falácia – não enxerga ou não quer enxergar a energia e o suor desprendidos, historicamente, à importante prática da coleta seletiva efetuada nas cidades brasileiras. Porém, depender financeiramente dos materiais recicláveis é cruel e desproporcional. Por que as grandes empresas que apenas recolhem os materiais recicláveis recebem milhões das prefeituras e o catador e a catadora que, muitas vezes coleta, separa, prensa, acondiciona e destina adequadamente os resíduos pós-consumo à indústria final não recebem pela força de trabalho?
Este é um dos grandes gargalos enfrentados pela categoria: o pagamento pelo serviço ambiental. Como garantir a sobrevivência das organizações de catadores e de catadoras, sobretudo a comida na mesa do(a) trabalhador(a), considerando apenas a última etapa do processo, ou seja, a comercialização dos resíduos? Além do mais, a política de fortalecimento da logística reversa, conforme prescreve a Lei nº 12.305/2010, é negligenciada se o catador e a catadora são meros coadjuvantes. Catadores (as) são protagonistas e peças principais à execução da logística reversa no Brasil. Ultrapassar os desafios, tanto internos quanto externos, não é fácil, contudo estimo que a categoria possa manter forte a luta diária em suas bases, manter viva a chama da coletividade e do senso de responsabilidade à condução de seus negócios. Que a esperança de tempos humanizados seja a motivação para continuarmos nossa sobrevivência. Que possamos esperançar como diria o eterno educador popular prof. Paulo Freire!